sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A luta com um morto

A luta com um morto
Comentário do livro lucidez do oco

Lucidez do oco nasce da meditação do que separa um corpo do outro, o observador do observado e interroga o desejo diante da solidão que constitui o diálogo dos mundos. Todo livro se desdobra de uma epígrafe de Dora Ribeiro como um murmúrio incessante de aprendizado: “entre um verso e outro/ uma solidão vazante”. Lucidez do oco aprende com a epígrafe e ensina abismos de inconsistências. Aprende também com os mestres a contradizer toda palavra doxa, todo sedimento de arrogância retórica. Tendo como herança vestígios de toda a tradição, incluindo a modernista, assiste ao desfile dos espectros evitados. Assim o romantismo retorna prismatizado na memória do samba de Nélson Cavaquinho e na letra de Guilherme de Brito. Espectros de um êxtase buscado mas só encontrado como eco de um oco.

Páginas movem-se concentrando adiamentos do êxtase. No contraponto, no deslocamento de um centro sonoro ou visual pronuncia-se a dicção deste livro. Vestir o nada seria tarefa de traduzir o poema como poema do poema exato.

Desse aprendizado geral surgem outros modos de ler o já consagrado. A disjunção da forma é a luta contra a rigidez cadavérica e demonstra-se na tarefa de desconjuntar o soneto ou de tirar-lhe o aço resistente, para mostrar o desenho, a língua de trapo do traço.
O ponto alto da meditação sobre a solidão é a série dos escritos sobre a imagem do morto, intitulada Diglauberiana. Cenas rememoradas do enterro de Di Cavalcanti, produzido e lido pela câmara de Glauber, são remontadas no papel-poema. Aqui irônico constata o que escapa ao triunfo dos algodões na sua ânsia de confirmar a paralisia da morte. O poema ao contrário faz mover o morto, para mostrar a obra inquieta e exuberante de tudo que vive. Contra a permanência da rigidez, a agitação do sexual. Contra a quietude da morte, a permanência do traço vivo: “retrato de mulata: uma nesga de coxa/ a constância do rego/ de sua bunda/ os afagos/ meu cabelo/ em desalinho”.

O poema move o soneto que retorna mais uma vez para compor o círculo da inexata forma. Toda a seção intitulada “desminas” refaz Murilo e Oswald, como se escrever fosse tropeçar no acervo da descoberta modernista e ainda assim rabiscar novas inscrições: “as minas são ouro de outras poéticas [...] os sóis de minha terra/ trazem sombras nuas”. Ousa recusar algum Drummond: “não mais o contorcionismo das almas/ as montanhas míticas, o ferro/ não mais a beleza dos aleijadinhos/ as igrejas/ o ouro/ não mais a secura das gargantas/ o andar medido/ a paixão medida”. A força do grafito pulsante afirma-se como uma doação de sentido erótica que se caracteriza por agitar raivosamente a inquietação do animal contra a rigidez do sedimentado: “O homem perdido em seu quarto/ atira chutes em vão”. O aprendizado com Drummond reaparece na meditação sobre a fotografia que vai gerar o título do livro. A fotografia poética é de “impercebida terra visitada”, ou a inventar. Tudo são lutas para não se deixar fixar por um retrato em si, propondo-se o fugidio de muitas linhas, ou o quadro que ‘vaga torto para sempre”.
A meta é atingir o “branco fim”, numa conversa inusitada com Mallarmé: “ a foto ruge/ sobre o leito branco/ fulge/ do que não há”.

Luiz Fernando Medeiros de Carvalho

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