quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Um cão chamado Buck

A leitura sempre foi tida como instrumento capaz de dar ao leitor algumas capacidades cognitivas, tais como o aprimoramento da escrita e da ortografia. Sempre foi justificada nas escolas por professores, pais, coordenações, a partir desse truísmo. Lê-se para que se possa melhor escrever. Durante anos, essa “verdade” freqüentou nossos ouvidos e falas. É hora de desmistificá-la.

O que faz com que uma pessoa escreva bem não é a leitura, mas os estudos da língua e, sobretudo, uma boa alfabetização. A leitura de bons textos, sua apreciação sistemática e rigorosa, constrói para o indivíduo uma outra perspectiva. Ligada de maneira profunda à percepção da vida, a leitura é uma atividade cotidiana, que se faz desde o momento em que se percebe a possibilidade de interagir com o mundo. Sair de casa, alimentar-se, ir até a esquina, essas cotidianidades só são possíveis porque o indivíduo lê. A aquisição de uma maior capacidade de leitura permite ao indivíduo e à coletividade, a qual ele pertence, uma maior competência para compreender os significados do cotidiano e, mesmo, a habilidade de romper com eles.

Se, entretanto, a leitura permite ao indivíduo que viva inserido em uma sociedade e com ela interaja, sua atividade pode representar um salto qualitativo nesta inserção. E, diga se de passagem, tal inserção não está na habilidade de escrever dentro de uma norma, mas na capacidade de com ela romper, de, a partir deste rompimento, conseguir fazer com que o leitor reorganize o mundo ao qual pertence. Descubra que novas estruturas subjazem ao que se costuma chamar realidade.

Para isso é necessário que alguns hábitos sejam relidos. Por exemplo, o costume de dizer que se devem adotar textos que despertem prazer e que a leitura deve se aplicar a este prazer é também um truísmo que acompanha a prática das aulas de língua e literatura. O aluno não vê, nos conceitos históricos e geográficos e mesmo científicos, prazer algum, e, no entanto, tais conceitos devem ser aplicados, para que o repertório de leitura do aluno se amplie. Algo de semelhante ocorre com a leitura.

A leitura de textos consistentes e literários, se adotada dentro de uma outra ótica, permitirá que os saberes entrem em confronto, que a ótica do exato seja permeada pela dúvida. Se se pensa em aquisição de saber continuado e inter-relacionado, a adoção de um livro deve mirar não apenas o descontínuo do saber, mas a sua ligação profunda com os pensamentos, com a percepção da dúvida, pois se sabe que nenhum saber descreve a verdade.

Tomem um exemplo. O conceito de evolução darwinista não permite que se pense em involução, o indivíduo se adapta ao meio físico para poder sobreviver. A leitura de um livro como O Chamado Selvagem, de Jack London, ilustra esse processo de adaptação, quando Buck, o cão doméstico é seqüestrado e levado para os rigores do frio e da luta pela sobrevivência no frio Alaska. Até aqui nada demais, poder-se-ia tomar o caso de Buck como meramente ilustrativo da teoria de Darwin. Entretanto, a voz que se ouve não é a de um homem, mas a do próprio cão. Em diversos momentos, essa voz relembra a antiga vida e, ao relembrá-la, inevitavelmente a percepção de uma perda – de uma “involução”, que é também moral.

Ora, se a leitura se amarra nestas duas perspectivas, a científica e a moral, como fazer para balizar a discussão? Vejam a riqueza que o texto traz. Permite que, sobre uma “verdade” científica, outras perspectivas se mostrem e promovam no leitor uma espécie de angústia construtiva, por não permitirem que a verdade seja posta de maneira inquestionável. É armado da dúvida que o leitor/aluno vai construir o seu saber.

Se mais tarde, quando o aluno estiver cursando o ensino médio e ciente de maneira mais madura dos processos da vida e tendo experimentado a dúvida, pedir-se a ele que leia O Cortiço, de Aluísio Azevedo, novamente terá de se deparar com a questão da evolução/involução.

Aqui não se trata mais de um cão, mas de um homem. Jerônimo. O português emigrado, para sobreviver à miséria humana do cortiço deverá se transformar. De homem trabalhador que era ao malandro típico dos trópicos, sobre Jerônimo, e com ele sobre todo um povo, – que somos nós – pesará a verdade revelada por Aluísio de Azevedo. O trópico preguiçoso, malandro, estará fadado, pelas condições do meio físico, a ser sempre um ser menor, um povo menor.
O leitor que aprendeu a desconfiar das verdades não se contentará com a aceitação pacífica destes termos e, sem que ele de imediato se dê conta disso, verá a leitura (e a literatura) não como um apêndice do saber, mas como a formuladora da dúvida, como o objeto – único – que permitirá a ele se contrapor inquietamente às verdades institucionalizadas.

Ao longo deste aprendizado – e vejam que só se escolheu um – o leitor encontrará prazer na leitura. Reconstrua-se, portanto, a reflexão. O prazer negligenciado anteriormente se revelou, então, uma estratégia para o texto ser adequadamente lido e o prazer de sua leitura ampliado.

Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2007.
Oswaldo Martins

2 comentários:

  1. Excelente texto, Oswaldo. Concordo com tudo. E para contribuir, acho que valeria dar um destaque à ficção na parte em que você se refere a "textos consistentes e literários".
    Agora, acho que foi muito radical quando disse que "O que faz com que uma pessoa escreva bem não é a leitura, mas os estudos da língua e, sobretudo, uma boa alfabetização." Concordo que a leitura não pode ter (e não tem) esse único e mesquinho objetivo, mas não resta dúvida de que a intensificação do contato com o escrita formal é capaz de fazer internalizar mais naturalmente a norma, sem o necessário estudo sistematizado da língua. O que quero dizer é que "uma boa alfabetização" passa necessariamente pela intensificação da prática da leitura.
    Mas acho que você pensa assim também e só foi um pouco extremista nessa parte do texto.
    Um abração

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  2. Alexandre,
    este foi um texto que escrevi para forçar o sentido da leitura. Creio que você está coberto de razão.

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