sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

campo de lamentação

1

devemos cumprir os ritos
lentamente, com unção

depois que o morto morto for
apenas

pois habitarão nossas lembranças
a apagada sombra

a dispersa noite

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Dois textos do Cesar Cardoso

NASCER

O ovo é o câncer da galinha. A galinha é o passado da canja. A canja é o efeito colateral da gripe. A gripe é o escritório do termômetro. O termômetro é o símbolo fálico do suvaco. O suvaco é uma axila que não tem erudição. A erudição é um cachorro sem mato. O mato é o cabelo da terra. A terra é o apartamento da minhoca. A minhoca é o desejo do peixe. O peixe é o homem da água. A água é uma invenção da sede. A sede é uma fome em forma de líquido. O líquido às vezes é um tipo de liquidação. A liquidação é a literatura do extermínio. O extermínio é o gozo do poder. O poder é o sorriso da mordida. A mordida é o sexo do dente. O dente é o nocaute do vampiro. O vampiro é a porção voadora da masturbação. A masturbação é o consumo do sonho. O sonho é a Marilyn Monroe do sono. O sono é o provisório do eterno. O eterno é a desculpa esfarrapada de deus. Deus é o almoxarifado do medo. O medo é o garfo e a faca da coragem. A coragem é o sexto mandamento do cinema. O cinema é o pânico da pipoca. A pipoca é a borboleta do milho. O milho é uma civilização. A civilização é um parto partido ao meio. O meio nunca é igual a seu irmão. O irmão é a diferença da repetição. A repetição é o aprendizado e sua morte. E a morte é o fim botando um ovo.


QUANDOS E ONDES

A pátria é o medo com fronteiras, a fronteira é a pior distância entre dois pontos, o ponto é um final circular, o circulo é um triângulo que rodou o mundo, o mundo não é nada mais o resto, o resto é a mais valia da aritmética, a aritmética não é o que conta, contar é o emprego da palavra, a palavra é um coelho na cartola da língua, a língua é o bumerangue do camaleão, o camaleão é o mostruário de tinta da natureza, a natureza é o cachorro de deus, o cachorro é um vibrador que abana o rabo, o rabo é o final de todos os bois, o boi é o passado do bife, o bife de hoje é o câncer de amanhã, o câncer é o reencontro da família, a família é a metástase da reprodução, a reprodução é o turismo do espermatozóide, o espermatozóide é a pré-história da saudade, a saudade é a mentira da memória, a memória é a cirurgia plástica do esquecimento, o esquecimento é o band-aid do ódio, o ódio é o mesmo lado da moeda, a moeda é o chocolate do tio Patinhas, o tio Patinhas é a Monalisa que tampa o cofre, o cofre é o sexo metálico, o sexo é um automóvel nas curvas, a curva é a mais bela distância entre dois pontos, a distância é o bate-boca entre o longe e o perto e perto é a fronteira sem pátria.


Cesar Cardoso

Poema do dia

CÁTARO

prêmio de adão e eva
o pênis exposto
o sacro sobreleva
a alma sobre a poster-
gada aura primeva
do primeiro gosto
de adão cobrindo eva

prima foto ou poster
do póstero ante-
cedido na ante-
câmara prelúdio
em ai da espécie es-
perma ou voz viés
do ser interlúdio

(Affonso Ávila - A lógica do erro)

Festa em Lassance


Ao Senhor G. Rosa,
pelo nome e lugar do nascido.


Prosa sentada de meia conversa e conto, dedo de café e partida. Em começo, digo. Foi Donana quem me contou dele. Falou que era diferente, eu agradaria seus desejos. Mostrou foto e o mais. Irmão de marido dela, dono dos olhos de várias moças, um sorriso bonito, porte vivo e ainda era safado que só. Riso todo em mim, esfriei barriga, enrubeci. Não de vergonha, que não era moça nessas coisas. Mas, é que carece, assim, vez em quando, da gente se constranger. Fiquei quase mês pensando nele. Imaginando, tecendo as ondas da voz, o toque dos cabelos, as formas como ia me domar. E seja no que eu estivesse, lavando roupa, cozinhando, varrendo casa, pegava, sozinha, voante, o pensamento nele. Cosendo a costura daquele moço de longe, distante aqui da minha Zona de Lassance.
No devanear da presença dele, vestia e desvestia chitas para saber aquela que mais agradaria. Na hora certa, o cair de panos aumenta inda mais o desejo. E no final das contas, eu já era pedaço dele antes mesmo do dia da gente se encontrar. Durante a noite, tinha calafrios, molhava camisola e roupas de baixo. Tinha sonhos bons e ruins, adormecia em desacordar. Vigiava o sono e o devaneio da vida. Partia o pensamento em planos de amor, desejo do corpo do outro, em sonho.
Uma semana antes da festa daqui, Donana avisou que vinha. Carecia tratar de uns negócios de família. Mas, ficava na cidade, trazia mulher para mãe conhecer, moça boa, de família. Entristeci. Há muito havia deixado a mocidade assim. Ainda quando pai vivia, a gente tinha respeito, aparecia pretendente com vontade de casar. Depois da morte dele, mãe, com três filhas em casa, sozinha. Ou a gente ia à força, ou com quem queria. Melhor era ir por querer. Minha primeira irmã arranjou moço de Urucuia, caixeiro, sumiu no mundo. A segunda engravidou menina, no meio dos buritizais, morreu de parto. Eu tive o Dito inda moça, pai sumido no mundo. Fiquei eu, mais ele, mais mãe. Dito reclamava minha falta em noite de passagem de tropeiro, quando eu ia servir cama e cozinha. Ainda pequeno alertava, crescido havia de não deixar isso não, ia fazer medo nos homens, não ia aceitar eu ir com nenhum não. Mãe é bonita igual flor de Açucena e em flor não se põe a mão, ele dizia baixinho. Rezo pro Dito não crescer.
Mas o moço de longe, sim, ele vinha com mulher. Donana ia com marido e filho em casa da sogra. É verdade, a contragosto, mas carecia de ir. Festejavam o encontro lá, muito desejado de reunir toda família. Ela me chamou, ir conhecer a cidade, mas fiquei com medo de entristecer mais. No resto, ele que aqui viesse, na minha Lassance, eu tinha ponta de orgulho. Mas, na verdade, carecia que, no meu peito, soprava uma ventania danada em direção à cidade. Aquietei. Temi. Esperei a festa, ele havia de vir.
Dois dias antes dos festejos, Donana mandou moleque me avisando que ele tinha chegado, com alazão vermelho, o Colorado. Vinha em competição, apostava seu cavalo na corrida e, de gracejo, aproveitava a me encontrar. Coração saltou pela boca, eu era de novo menina. A gente estava em meio da preparação dos doces, em face corada do tacho de mamão verde fervilhando. E necessitava inda de acabar o capricho, não havia como deixar panela no fogo. À noite, sim, aconselhava encontro. Mandei de volta o aviso.
Fim de tarde, procurar flor de perfumar e outras de trançar no cabelo. Banho de flor de maracujá no rio e enfeite dos cachos com flores diversas. O corpo foi parar dentro do vestido de chita em arranjo vermelho, na mesma cor do carmim que passei na boca e nas bochechas. Não coloquei roupa de baixo, ele devia de sentir meu cheiro de mulher no cio. Queria que quando ele colocasse as mãos por debaixo da minha saia, nada o impedisse de sentir meu sexo como orvalho em flor. Era o de não se esquecer.
Na saída de casa, beijo no Dito, benção de mãe. Proibição de menino ir festa a fora de noite. De dia havia de levar para jogar víspora. Também, ficasse com sua avó, caso ela precisasse. Ele ficava... Bendito, o Dito. Estradinha curta perto do riacho, cheiro de grama de chuva, ventania a levantar o vestido. Já de longe avistava as barracas aluminadas, coloridas. Andava sentindo o encharcado do chão nas alpercatas. O passo desacelerava corrido na ânsia que sentia cá dentro. Um medo, um desejo, uma vontade de galope. Avistei Donana com os filhos na varanda de sua casa. Estremeci no talvez dele lá. Desci direto na barraca das bebidas. Tomei vinho doce, catuaba quente, sem amargor. A Festa de Lassance tinha música de sanfoneiro e tudo. A gente divertia até o mais tardar. Três doses bastaram em dar uma vontade de dançar, uma leveza boa de fechar os olhos, trocar os passos, rir alto e ouvir bobagem. No repente, passaram a mão na minha cintura, cheiro forte de homem e de boa cachaça, nem precisava olhar pra saber que era ele. Dancei em meio ao povo e quando dei com aquele rosto bonito perto de mim, o rumo se perdeu. Barba feita, cabelo em gomalina, dentes brancos num sorriso largo. O encanto do desejo do amor, mais bonito que o próprio amor. Modo de querer maior que o que se quer, pois a gente nem sabe o que se quer, nem mesmo se quer. Falar a verdade, parecia que só tinha nós dois ali. Girar de carrossel, as luzes das barracas entravam na retina para todo o sempre. Cheiro de cachaça, vinho, doces, salgados, de tudo que se bebe, come e cheira. Risos ao longe, vozes do padre e das beatas, cantando as pedras. Repetições e a boca dele com hálito de bebida quente. Deus abençoa a Festa em Lassance.
Não sei quanto tempo estive na dança dos festejos, só lembro do depois, a gente nas pedras do riacho, a inteireza de minha doação em prenda, fosse como besta em cio, de doma não arreliada, presa pela cintura... Fosse deitada entre as pedras, sonho de inda moça, apertos de santa, cá dentro à revelia. Depois do arfar, do morder, do morrer, a gente olhou as estrelas do céu num apaziguamento de amor, sabido não? Um sossego do corpo, no entender das coisas. Meu Colorado venceu, ele falou em sorriso... Duas cabeças de frente! Estava cheio de si, homem vencida a disputa. Mansa, fui pra junto dele, apertei nos braços o que não era meu e sonhei, num bocado, que era. O coração miúdo... Só Deus sabe como é a dor da querência que só pertence à gente. Amor de esperança de carta, de pedido de casamento, de flor catada em jardim, de dizer que é amada também. Mas, no rumo inverso, a vida parece carregar o não receber das coisas e desviar a gente numa terceira margem de rio.
Fui feliz sim. Sempre acredito em resto de alegria, sina de pouco. Mas, não deixo de sentir falta de bendizer a vida para sempre. Partimos, ele com promessa de volta, que a gente sabia não acontecer. Beijo curto, caminhada sem olhar para trás. Cheguei em casa, Dito dormia. Sonhava? Deitei na cama, ainda com cheiro dele no corpo e no vestido. Um ardor abrasava o embaixo do vestido, lembrança do se esquecer. Mais um para o nunca mais de amar... Sei não. Festa em Lassance durou pouco aquele ano.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sobre o parlamento no Brasil

Desde que Rogel Samuel, através da rede (www.blocosonline.com.br) escreveu sobre um esforço constante de desmoralização do congresso nacional e de parlamentares em geral, fiquei mais atento à imprensa acerca do assunto. A imprensa: a mesma que procura desmoralizar o executivo e o judiciário, sem lograr todo o êxito almejado.
Não vou remontar. Os gabinetes do Império e a República Velha estão diagnosticados em presença e em perspectiva desde 1881 pela obra machadiana. A imagem pessoal que formei do congresso desde que lhe percebi a existência, ali pelos fins dos anos 1950, deu-se quando do golpe militar de 1961, chamado de emenda parlamentarista e conseqüente votação da aprovação da escolha do Primeiro Ministro. Seria o Dr. Santiago Dantas, o escolhido. Ouvi-lhe impressionado o discurso, convencido de que o país estaria em excelentes mãos governadas por aquela cabeça privilegiada. Mais impressionado fiquei quando o congresso rejeitou a nomeação desse raro jurista e parlamentar.
Percebi antes do fato e até hoje a importância democrática do debate das casas legislativas, ouvindo e observando a fala de parlamentares como Nereu Ramos e Carlos Lacerda, antes do golpe; Márcio Moreira Alves, Cristina Tavares, Beth Mendes, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Ulisses Guimarães, durante a ditadura militar e depois do período.
Desde essa votação que vetou Santiago Dantas, verifiquei que o congresso é formado por representantes de uma sociedade oligárquica, concentradora da riqueza, conservadora, preconceituosa e carola. Minha crítica volta-se contra representantes dessa corrente hegemônica.
‘Critico atitudes advindas do congresso nacional, sem o absenteísmo da massa que se esquece em quem votou, para depois descrer dos políticos. Seja exemplo o a não efetivação da CPI do futebol. Sem absenteísmo e com o pessimismo fértil de um Brás Cubas, o bacharel defunto a bradar do cemitério do Catumby. Que não se desmoralizem parlamentares com calúnias e outros expedientes, nem se queira, como quase sempre no meio século recente, destruir o poder legislador.



Cláudio Correia Leitão

sábado, 14 de fevereiro de 2009

No caminho de Swann (parte I)

Eu estava, pelo contrário, encantado, e mamãe foi buscar um pacote de livros que, através do papel que os envolvia, só me deixaram adivinhar seu formato oblongo, mas que sob esse primeiro aspecto, embora sumário e velado, já eclipsavam a caixa de tintas do Primeiro do Ano e os bichos-da-seda do ano passado. Eram La maré au diable, François le Champi, La petite Fadette, Lês maîtres sonneurs. Minha avó, como depois vim a saber, escolhera primeiro as poesias de Musset, um volume de Rousseau e Indiana: pois, se julgava as leituras fúteis tão prejudiciais como os bombons e os bolos, não pensava que os grandes sopros do gênio tivessem sobre o espírito, ainda que fosse o de uma criança, uma influência mais perigosa e menos vivificante do que, em seu corpo, o ar livre e o vento do largo. Mas como meu pai quase a tivesse tratado de louca ao saber dos livros que me queria dar, ela própria voltara à livraria de Jouy-le-Vicomte para que eu não corresse o risco de ficar sem presente (fazia um dia escaldante e regressara tão mal que o médico advertiu minha mãe de que não a deixasse fatigar-se daquela maneira) e se atirara aos quatro romances campestres de George Sand. “Minha filha”, dizia ela a mamãe, “eu nunca seria capaz de dar a esse menino qualquer coisa de mal escrito.”

(Marcel Proust)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

1

paixões são elementos da liberdade
teu corpo exemplo dela
quando sorri o fogo
inexplicável
que se rouba

aos deuses

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

romancinho

enxuguei noites

compus vozes verdes
e na fímbria da montanha

as estrelas tremeluziam
cantavam

e os gitanos

os gitanos seguiam
seguiam

*

ai morena, ai morena
enxuguei noites

sem fim


(oswaldo martins)

Quitandeiro

Quitandeiro,
leva cheiro e tomate
na casa do Chocolate
hoje vai ter macarrão
prepara a barriga, macacada
que a bóia tá enfezada
e o pagode fica bom.

Chega, só trinta litro de uca
pra fechar a muvuca
desses nego beberrão

Chocolate,
tu avise a crioula
que carregue na cebola
e no queijo parmesão

(Paulo da Portela)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Frase 1

Entregava marmita. E no caminho eu tinha fome. No caminho abria a marmita e contava os bolinhos. Se a família tinha duas pessoas, tinha seis bolinhos, eu afanava dois; se a família tinha quatro pessos e iam dez pasteizinhos, eu comia no caminho dois. Era malandinho já. Não era malandro, era espertinho. Tinha fome , não era malandro, era fome, não era malandragem. Sabe o que é malandragem? Malandragem é fome.
(Adoniran Barbosa - programa Ensaio)

Ensaio

Ensaio
Para Fernando Faro

Em 1973, Fernando Faro inaugurou um programa histórico. Ensaio. Ouvir as gravações das entrevistas e das músicas é como provar do manjar dos deuses, beber do vinho de Baco, tamanho é o prazer de perceber a dicção das histórias dos nossos artistas mais significativos e queridos. Nele gravaram Elis Regina, o primeiro programa, Adoniram Barbosa, Nélson Cavaquinho, Cartola – tantas foram as histórias, tantas a gravações que emocionaram um público que gostava ou aprendia a gostar de nossa música.

Marcante entre tantos, gostaria de dizer da emoção que foi ouvir o programa feito com a Velha Guarda da Portela, a apresentação também emocionada que Fernando Faro faz do grupo de compositores portelense. Chico Santana, Monarco, Mocinho a Beça, Alvaiade, Aniceto, Manacéa, a ausência de Miginha, internado e as palhinhas de Cristina Buarque, Elifas Andreato, e Carlinhos Vergueiro. As histórias da Portela. Sua batida única. A rusticidade maravilhosa das vozes em solo ou em coro.

O desfile das composições bem medidas, perfeitas em sua inteireza, no qual letra, música e canto se tornam um paradigma da composição do samba, demonstra didaticamente o significado da expressão mais intensa de nossa arte.

Fazer um programa de entrevista com uma pessoa pode resultar em jóias raras, como de fato resultaram as entrevistas do Ensaio. Fazer com um grupo de pessoas, só é possível se estas pessoas possuem a dimensão do que são e do que fazem, como da agudeza e sensibilidade do entrevistador. Essa possibilidade se dá a ver, quando se percebe que o estúdio se transforma no terreiro onde evoluem as vozes, os instrumentos, como em uma autêntica roda de samba.

Já ouviram o Quitandeiro?

(oswaldo martins)