quinta-feira, 18 de junho de 2009

Encantada palavra

Palavra (En)cantada é um filme bonito. Desde a fala inicial, ouvimos e vemos desfilar uma série de depoimentos sobre o que se convencionou chamar de música popular brasileira. A questão que se propõe como linha temática está na indagação do estatuto da letra feita para composições musicais.

A lembrança histórica dos trovadores – principalmente os provençais, de que ainda se guardam partituras e, portanto, o canto e a música – é exposta de forma didática e exata. Recuperados, estudados e divulgados pelos poetas concretos, principalmente por Haroldo e Augusto de Campos, a poesia trovadoresca permite que se percebam as estruturas de outra época, na qual o proveito do tempo era matéria possível. Os meios de divulgação – escassos – permitiam que a música e a poesia provenientes deste meio social circulassem em ambiente restrito. Não existissem os cronistas dos reinos – os verdadeiros depositários da tradição – não existiriam as canções trovadorescas. Ligá-las ao que aconteceu durante o século XX ou ao que antes acontecera com a literatura grega me parece no mínimo complicado.

Todo o desenvolvimento da narrativa e do argumento do filme se baseia nesta primeira aproximação, que, de certa forma, permite que se vejam algumas diferenças entre o fazer poético e o fazer musical – ou da letra de música. Por volta do século XIV, com as mudanças sociais acontecidas, como a ressurgência da subjetividade, o aparecimento dos primeiros movimentos de formalização dos tribunais de justiça, poesia e música se distanciam – a música vai tornar-se sinfônica – a poesia independente da composição – sem contar que, com Fernão Lopes, a história se desligará do maravilhoso. O que antes era uma peça unívoca – história, música e poesia – agora alça voo próprio. Cada uma delas neste desligamento buscará estatuto próprio. Em Portugal a poesia trovadoresca dá lugar à poesia palaciana, mais elaborada e complexa. A elaboração da poesia permitirá o aparecimento de Camões, para se ficar apenas no ambiente da língua portuguesa.

A pressa, perdoem aqui a ironia – é própria da música. Dir-se-ia mesmo, como no adágio popular, que a pressa é inimiga da perfeição, assim como a necessidade imediata de circulação a faz ligada ao mercado e ao consumo, ao gosto do público, enfim. Desta forma mais próxima da ideologia. Esse pequeno adendo – que não está, é óbvio, no filme – é na verdade o motivo desta longa introdução.

Não tomem, leitores, entretanto, estas palavras como um discurso contrário à música. A música é um fenômeno artístico tão válido e nobre como qualquer outro ofício humano, assim como o fazer poético se enquadra no mesmo viés. O que incomoda, e o filme pressupõe esta medida, é o endeusamento de um fazer cultural. A cultura é em toda a sua extensão, do balaio indígena a mais alta pesquisa tecnológica, expressão do humano, e humanos somos todos nós. Entronizar um fazer – seja o da composição musical seja o da composição poética – não faz, quem o pratica, diferente ou merecedor do apodo de gênio. Entronizar pessoas ou seus produtos é recair num tosco romantismo, com seu viés torto e defasado, com sua tábula de ilusionismos. Defender posição diferente é permitir-se atitude antidemocrática e fascista, pois hierarquiza as sociedades, as civilizações, permitindo senão o extermínio total ao menos o extermínio cultural.

O que torna um marceneiro, marceneiro; o que torna um músico, músico; um poeta, poeta é a dedicação com que abraça seu fazer, os anos de estudo e reflexão que vão lhes dar a medida do exato e das possibilidades de fazer seu ofício de modo correto e ao mesmo tempo inovador, descobrindo nas brechas do que se fez antes a possibilidade de marcar o mundo com sua personalidade, construída ao longo do tempo. Neste sentido, um poeta que resolva fazer um móvel, um marceneiro ou um músico que resolva fazer um poema só poderão fazê-lo se estudarem e refletirem sobre o que pretendem fazer. Daí a diferença entre um bom móvel, um bom poema e uma boa música.

Juntar todos os fazeres como a expressão de um só fenômeno é no mínimo recair em equívoco. Equivoca-se o filme, portanto, em afirmar que letra de música e poesia são a mesma forma de expressão, ou a se recusar a discutir a questão mais a fundo, como o faz Adriana Calcanhoto.

Apesar deste equívoco, o filme tem momentos de beleza e percepção crítica. Tomem, por exemplo, a fala de Chico Buarque, quando pedem que leia a letra de sua música palavra. O músico é preciso e irônico, ao dizer, quase sem que se perceba, em tom mais baixo, que “cantado é mais caro” ou ao afirmar que a palavra palavra só estava ali porque a música assim o exigia. A reflexão sobre o seu fazer não lhe permite certo oba-oba, típico de certas falas ao longo da história de nossa música. Desta maneira, ao se afastar de certo tom que o filme busca, Chico Buarque coloca lenha na fogueira das vaidades e salva o filme de uma maior imprecisão. Mas não se esqueçam, Chico também não é o gênio da raça, apenas demonstra maior lucidez, por ter-se dedicado a entender o que significa a música, o que significa a literatura.

Emocionam também no filme as falas de Lirinha. Ao demonstrar, didaticamente, o quanto seu canto e desempenho são caudatários da poesia, principalmente de uma poesia que rejeita a música, como a de João Cabral, mas que se erguem em linha própria e se diferenciam enquanto ofício. Aliás, a fala de Lirinha abre outra linha temática importante no filme e que será complementada pela discussão acerca da música de Cartola e dos sambas que a sociedade brasileira viu surgir desde seus morros e favelas e da presença esfuziante da poesia modernista.

A tradição poética brasileira até hoje, malgrado o aparecimento da poesia moderna, lê como poema a tradição parnasiana e romântica. O filme, ao ler Cartola, repropõe essa discussão. Ao perceber em Cartola a presença de Olavo Bilac, faz desfilar todo um contraste entre a poesia burguesa de São Paulo e a letra da música popular egressa do Rio de Janeiro. Algumas proposições adicionais podem iluminar a questão proposta.

A poesia erudita do século XIX (romântico-parnasiana) mantinha um padrão de identidade social, como herança mesmo do país bacharelesco e religioso, que então era o Brasil. O samba não foi facilmente reconhecido, como expressão de sua cultura. que era a de falsos franceses, falsos cultores do parnaso europeu.

Ora, ao desprestígio a que se submetiam as classes sócias que não representavam a elite brasileira era necessário que se fizessem algumas ações de resistência, como a fundação das escolas de samba, a cooptação que a composição popular fez de Noel Rosa. Uma dessas ações foi a de “imitar” a escrita da elite, via Bilac, via Guerra Junqueiro, poeta português que muito influenciou Cartola. O samba falou, então, em uma deliciosa segunda pessoa, tão original quanto os erros intencionalmente cometidos pelos poetas de nossa elite.

Essa dupla originalidade que se cruza com intenções opostas vai permitir que o país encontre para si uma imagem própria, que as mídias fazem questão de destruir, quando oferecem um pastiche da música, quando oferecem um pastiche da poesia, quando, em suma, não fazem com que se diferenciem os estatutos de cada fazer cultural. E permitem que circulem como verdade questões que necessariamente devem circular como indagação.

(Oswaldo Martins)

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