quarta-feira, 16 de maio de 2012

Capa de chuva ou escansões para os fios da noite


A duração da ação trágica é de um dia, do nascer ao por do sol, neste período deve o personagem trágico passar da boa para má fortuna ou da má para a boa fortuna, bem como descortinar as questões políticas e sociais que envolvem a polis. Na ação de No Fio da Noite, Ana Teresa Jardim inverte o preceito aristotélico e faz de sua personagem elemento noturno. A prostituta argentina Nena, protagonista da história, vai vivenciar no período de uma noite, do por do sol ao seu nascer, os problemas que fazem parte da cidade que a mal acolheu.

Além do périplo peripatético de Nena pela noite do Rio de Janeiro, as descrições da cidade são de beleza incomum, pois o que se mostra da cidade não é o ambiente edulcorado das praias e inconteste mitificação tão ao gosto dos nativos que se põem a falar e a discorrer sobre ela. A cidade aparece inteira, com seu poeta e gravador (as descrições das gravuras do descendente russo Boris me lembraram as gravuras de Goeldi), com seus gangsteres e proxenetas, mas sobretudo no seu ambiente mais denso que é o da noite do cais do porto e das ruas edificadas ao acaso desse delicioso Rio de 1922, com seus sambistas e artistas ambulantes.

A leitura de um fôlego só, como se a noite nos obrigasse a vivenciá-la por inteiro e no mesmo ritmo do romance, demonstra a maestria da composição e as deixas que a narrativa vai plantando como sucedâneo da irrealização do texto e, ao mesmo tempo, da realização do imaginário que o preside.

Outro detalhe importante saboroso da composição de No Fio da Noite está presente nas páginas finais em que a verossimilhança parece comprovar a adequação e o equilíbrio da narrativa. Refiro-me aos “quase anexos” que dão conta da investida ficcional. As receitas, a crônica de Tulio Neves, a carta de Irena e, sobretudo, a deliciosa notícia publicada na revista A Passarela, de agosto de 1922, na qual se dá conta da moda que toma o Rio de Janeiro – “o uso da capa de chuva, ou impermeável, de corte masculino, à guisa de vestido” (93). Lançado por Nena, a moda intervém precisa e determinadamente nos costumes da cidade e sugere que a moda das mulheres desta cidade e a própria cidade se compuseram através do contato unisual dos mundos separados e fundidos num mesmo e paradoxal ato de constituir a própria cidade.

Ana Teresa Jardim sabe, como afirma o poeta[i], que a sagacidade está em saber farejar delícias.

(Oswaldo Martins)




[i] O poeta a que me refiro aqui é Rogério Batalha.

Um comentário:

  1. Oswaldo, você captou bem várias qualidades da narrativa da Ana, e esse lance da capa de chuva resume bem uma delas. Eu ADORO o jeito como detalhes são importantes no que ela escreve e como ele os coloca ali com aquele jeitinho meio quieto, assim de passagem, e como são eles é que criam a atmosfera, determinando um estilo. O outro livro dela, do menino de Copacabana, faz isso de um jeito maravilhoso, também. Bela resenha!

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