sexta-feira, 27 de julho de 2012

Para dizer a verdade ou os mortos desaparecidos


Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa


“Que fugisse, que fugisse...
- bem lhe dissera o embuçado! -
que não tardava a ser preso,
que já estava condenado,
que, os papéis, queimasse-os todos...
Vede agora o resultado:
mais do que preso, está morto,
numa estante reclinado,
e com o pescoço metido
num nó de atilho encarnado.

- Isto é o que conta o vizinho
que ouviu falar o soldado.
Mas do corpo ninguém sabe:
anda escondido ou enterrado?
Dizem que o viram ferido,
ferido, e não sufocado:
de borco em poça de sangue,
por um punhal traspassado.

- Dizem que não foi atilho
nem punhal atravessado,
mas veneno que lhe deram,
na comida misturado.
E que chegaram doutores,
e deixaram declarado
que o morto não se matara,
mas que fora assassinado.

E que o Visconde dissera:
“Dai-me outro certificado,
que aquele ficou perdido
por um tinteiro entornado!”
E quem vai saber agora
o que se terá passado?

- Talvez o morto fosse outro,
em seu lugar colocado.
A sombra da noite escura
encobre muito pecado.
Talvez pelo subterrâneo
fosse ao Palácio levado...
Era homem de muitas luzes,
pelo povo respeitado;
Secretário do Governo,
que vivia em grande estado:
casa de trinta aposentos,
muito dinheiro emprestado,
e do velho João Fernandes,
dono do Serro, afilhado!

- Não creio que fosse morto
por um atilho encarnado,
nem por veneno trazido,
nem por punhal enterrado.
Nem creio que houvesse dito
o que lhe fora imputado.
Sempre há um malvado que escreva
o que dite outro malvado,
e por baixo ponha o nome
que se quer ver acusado...

Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo,
em fábula arrebatado,
como árcade ultramarino
em mil amores enleado.

(Cecília Meirelles – O Romanceiro da Inconfidência – Parte 3)

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