domingo, 9 de setembro de 2012

LÁGRIMA PALHAÇA: A POESIA-SEMENTE DE INFÂNCIA E MEMÓRIA


Tania T. S. Nunes, doutoranda UFF

                                  O bote é cilada / Adverte à naja
  A flauta do encantador
 Melhor seduz / Quem se deixa dominar (p. 23)

                Em tempos de corpos enrijecidos e descrentes da vida, o título de um livro de poemas pode soar reticente e desafiador. A princípio, Lágrima palhaça é aquela que o mundo já não comporta, mas que insiste em rolar. Poderia ser uma lágrima escondida, envergonhada. Afinal, vivemos tempos duros, um mundo quase destituído de sentido em que a lágrima sentimental, ingênua ou de alegria já não tem mais espaço para correr e molhar nossos rostos.
            E, por esse caminho, adentremos a poesia de Alexandre Faria, Lágrima Palhaça (Aquela Editora, Juiz de Fora, 2012). A edição em formato de bolso sugere que a poesia seja carregada no dia-a-dia. As letras do título estão penduradas, estilo bonecos de marionetes. Desconfia-se que algo mais queira dizer... O “G” invertido aponta para um avesso. Tudo isso são só coincidências ou poderão trazer sentido para a leitura dos poemas que se oferecem por trás da forte seara verde da capa? Qual a expressão desse avesso?
            O número de poemas da obra integra um universo mágico. São vinte e cinco. Vinte e cinco foram também os anos de engavetamento desses escritos, nos diz o poeta em Nota prévia. Mas algo mais se começa a descortinar em Papo de Bilheteiro, texto inicial de André Capilé e, também, no título do primeiro poema: Circo. A temática aí vai anunciada.
            Estamos em terras perigosas que nos aproximam do mundo encantado da magia circense onde a poesia de Alexandre passeia subentendida de infância e embutida na memória, na delicadeza dos gestos, no riso retirado facilmente até na cena mais simples e comum pelo palhaço.
            A poesia-criança de ver o mundo com olhos puros, olhar sonhador de menino ingênuo que ainda não sabe o tempo porvir, mas vive o presente feliz, crédulo e crente, a  acreditar no que vê e no que intui em seu imaginário.
            Hoje tem marmelada?
                Hoje tem goiabada?
               
Tem sim senhor!  Tem poesia. Pão e circo eram de que precisava o povo antigo. Poesia é alimento, é pão e criação. De poesia e circo, todos precisam. Vamos nos lambuzar! Vamos “descobrir à vista, o que não havia sido posto à venda”, anuncia o Bilheteiro. Esse é o ingresso em Lágrima Palhaça. Essa é a magia para penetrar na mágica das poesias de Alexandre Faria. Unir os sentidos ao sentido.
            A expressão do avesso é o palhaço, a figura ambígua. “É o avesso da mentira,/ Pintura que se retira/ E desvenda outra mentira, É o verso.” (2012, p. 13).
            No primeiro poema, o G invertido da capa sobressai nos elementos da composição. Lê-se: “O palhaço/ ... E todos os seus filhos/ São palhaços, / Marionetes dos risos, /Vedetes do circo,/ Objetos de uma alegria / Que o próprio show proporciona,/ Gargalhada que sempre funciona / Na única vida como vida.// O palhaço / É a lágrima proibida, /O tempero ardido/ Do seu prato de comida,/ É o verso / desgastado, corroído, / Medo e ira disfarçados, /Riso e festa plagiados / Único verso já escrito”. (2012, p. 13).
            Gargalhada desgastada, riso e festa plagiados: é o verso, é a alegria contida, é a figura ambígua do palhaço. É o poema. Todos esses elementos, em tempos medrosos de mendicância social e cultural, insistem em sobreviver. A Lágrima Palhaça é a lágrima proibida.
            E o poeta ao ser indagado sobre se há sentimentalidade em Lágrima Palhaça aponta o poema Amor:  
            O que esfria a mulher do atirador
                Não é o risco do milimétrico desvio
                O tiro de venda nos olhos
                O rufo o silêncio os ohs dos vizinhos//
                Nem o quanto lhe cabe das plantas //
                Nem o cuidado que ele tem com a tábua (2012, p. 32).
           
O que esfria a mulher do atirador? O poema não responde. Mas não é preciso dizê-lo. Está no título do poema. O cuidado que ele tem com a tábua e com a arte implica no avesso da vida, o cuidado em preservar o amor na figuração da mulher entregue às facas. E, ela ante o perigo da vida entrega-se ao risco, ama e sente-se amada naquele momento.
No entanto, não instile a memória de um adulto sensível ao falar da infância, do circo, do palhaço, das marionetes e malabares porque a lembrança refaz-se rapidamente no tempo seja ele em que distância estiver. São imagens marcadas a gargalhadas no inconsciente coletivo.  Isso é Trânsito. Nesse poema se lê: “São malabares as motos / Do globo da morte” (2012, p. 26). São malabares as nossas lembranças escondidas e, às vezes elas precisam transitar pelo tempo presente para fazer o homem não esquecer de que está vivo e a morte espreita a qualquer momento, porque “A criança no retrato/ Uma jaula// E o futuro não era presa / do adulto” (2012, p. 36).
            Lágrima Palhaça são instantes de poesia. São puras gotas de arte em pequenos frascos trabalhados com muito amor sobre o verso-criança. Poucos versos, o jogo da métrica presente no sentido das palavras.
O leitor vai enveredando... a memória vai escavando momentos e personagens do circo... verso a verso... até a última sílaba: Plantio: “Ri do fim / Que essa lágrima fecunda”. É uma afirmação contundente. Mas ela surpreende e esvazia o leitor porque deixa o gosto de quero mais. Assim, a poesia é Sedução, é cilada. É como comer goiabada e não ter a chance de se lambuzar. E o poeta torna-se um Bamba. Constrói “pé ante pé / a vara / a sombrinha // Não há corda entre os extremos da espera”.
Seus versos são “eletrochoques para não esquecer”. Lágrima Palhaça pode até ser uma lágrima que não tenha razão de ser, mas é aquela que diante da solidão dos tempos e da memória escavada em vasos insiste em brotar. Por isso a partir dela esperamos sempre mais. Esperamos outros poemas, outras construções, outros exercícios de sutileza transformados em arte.
Lágrima Palhaça é, enfim, semente de poesia colhida em seara fértil. Como semente, só ela é capaz de gerar, nutrir, suprimir, suprir ou acudir como qualquer criação depositada pelas mãos de um poeta – sensível e dentro do mundo, no limite do desequilíbrio mas equilibrado entre o avesso e o vivido – pode produzir.
Riamos todos do fim...
Porque foi possível chegar lá. 

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