quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Literatura e Censura


O avanço dos conservadores no cenário brasileiro não se resume às eleições findas. Uma série de episódios isolados vem demarcando o avanço destas forças. O constante ataque às obras literárias e artísticas e a alguns conceitos sobre arte o revela. Há um clima de insuportável vigilância sobre os temas e a forma de expô-los. Não satisfeita de impor aos cidadãos as câmaras aplanadoras da vigilância sobre um grupo privado, as garras dos monstros produzidos pelo sonho da razão se estendem ao âmago do pensamento e de sua construção. Há uma urgência de vigilância e controle nos meios formadores da ideologia privatista e antidemocrática com que convivemos cotidianamente no nosso ofício de escritores, artistas plásticos e livres-pensadores.

Tal controle é que faz os comuns preferirem os selinhos da má dama Hebe Camargo à formulação do mega pensador Hobsbawm ou à obra do escritor mineiro, brasileiro e universal Autran Dourado. Há um quê de pensamento formador no ar que intencionalmente nos faz esquecer, pela ausência, o que realmente importa e se constitui universalidade. Assim criam as possibilidades que atingirão, para além do anedótico, o centro nevrálgico da nova censura que se dá de forma absolutamente naturalizada e constante. Mesmo algumas “reações” contrárias à censura são escritas e veiculadas como uma “corajosa” afirmação da desculpa de que há pessoas que pensam na impertinência das construções que incomodam o lugar de conforto em que a sociedade se acha mergulhada, mas, na verdade, possuem fôlego maior. A simples veiculação do objeto de censura não livra a cara de ninguém de compactuar com a própria censura. A exposição dos fatos, com a neutralidade dos covardes, é uma forma – talvez a mais bizarra – de refirmar o lugar da censura. Ao não afirmarem o absurdo de se censurar qualquer criação humana, criam as brechas para os “eu não disse”, os “não vê que deveriam”, repetidos aqui e ali como um coro mal digerido de cidadãos sem cidadania, que mais concordam com seus líderes do que a eles apontam a usurpação dos direitos e a eles se opõem. Dizer que tal ou qual obra sofreu censura é apenas informação e não tomada de consciência de que de fato haja censura.

Os episódios vêm sendo constantes e partem de instituições particulares, que se acham no direito de legislar sobre o que pode ou não ser visto, lido ou desfrutado pela liberdade dos comuns. Ora, desde a Constituição votada em 1988, a censura acabou oficialmente no país, o que equivale dizer não haver censura oficial. O perigo que a censura privatista constrói e a que se deve estar atento e à qual se deve opor é a da insidiosa criação de um ambiente propício ao ressurgimento das censuras oficiais.  Em nome do politicamente correto, em nome da atitudes possíveis, em nome da naturalização do saber oficiosamente busca-se recalcar a livre manifestação, a livre apreciação do escabroso, do distorcido, do horroroso.

Como a literatura moderna nasce a partir da proximidade com o que é desviante e escuso, a apropriação desta matéria pouco nobre, o abandono do sublime, se antes serviu para que se naturalizasse o desejo subjetivo, hoje – quando as relações se querem livres e afirmativas – há um incômodo no ar, quando o poeta e o artista contemporâneo buscam, na expressão do que incomoda, o objeto através com o qual fala ao mundo – e ironicamente isso se dá quando o artista expõe a fragilidade do conceito da arte, através da interferência imediata e não mediata das afirmações vivenciais do próprio corpo, do erotismo e mesmo da pornografia literária. Se no início da modernidade eram as corcundas, as manchas da alma e do corpo, as fezes que fizeram arrepiar o leitor, no fim da modernidade, como se a conhece, esse pequenos desvios já não falam senão do que é gosto comum e como a necessidade da poesia – ou da arte em largo senso – é dizer o que foge ao senso comum e defini-la como artigo do belo, surgem os embates contra o que está arraigado pelo moralismo da sociedade controlada pelo semianalfabetismo, pelas diretrizes dos que adquiriram algum poder – relativo à própria instituição ou mais amplo.

A necessidade da arte é a de ultrapassar os limites da justiça e criar um vazio na sua própria constituição para verificá-la fora dos ditames temporais demarcados pela construção de uma justiça alheia e que é determinada como justa pela ausência de embate. Curiosamente os poetas e artistas agredidos se calam ou, se falam, não encontram eco nos ampliadores formais da comunicação, que preferem a formulação rasteira que se esconde no truísmo da informação clean e não opinativa.


(Oswaldo Martins)

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