sábado, 22 de junho de 2013

Aby Warburg, uma curta notícia

Um arguto estrangeiro já disse que partilhamos de uma terra onde o impossível é possível. Embora soubesse que o impossível de que falava raramente fosse de qualidade, o extraordinário estava em que também pudesse sê-lo. É o que agora se verifica com a tradução do livro excepcional de Aby Warburg (1866-1929), originalmente editado em 1932, "Die Erneuerung der heidnischen Antike" ("A Renovação da Antiguidade Pagã"). Até o fim do século XX, autor e livro estiveram circundados por um halo de mistério. O choque entre o que Warburg vislumbrava e a obra dos que seriam seus continuadores é tamanha que Didi-Huberman o chama de "pai fantasmal da iconologia".

Embora apoiado por colaboradores constantes (Fritz Saxl e Raymond Klibansky), embora lembrado com emoção no discurso de exéquias de Ernst Cassirer, a recordar o decisivo que fora para a composição de "A Filosofia das Formas Simbólicas" (três volumes, 1923-29) frequentar a biblioteca de Warburg, ainda em Hamburgo, embora o também historiador da arte, participante da organização da biblioteca transplantada para Londres Ernst Gombrich tenha escrito, já em 1970, sua biografia, embora, seu nome permanecia no limbo da memória remota.

Não sei explicar como se dá seu redescobrimento. Sei apenas que, a partir da reedição alemã de 1998, não só sua "Erneuerung" como ensaios menores, apontamentos tumultuados, a correspondência com seu psiquiatra, Ludwig Binswanger, a descrição do "ritual da serpente" entre os remanescentes dos índios pueblos, por ele próprio testemunhado no Novo México, entre 1895 e 1896, cujas fotos lhe serviram, em abril de 1923, para mostrar a seu médico que estava "curado", se tornaram quase simultaneamente acessíveis em traduções americana, espanhola, italiana. Se parece que os editores franceses optaram por verter apenas a parte mais acabada da "Erneuerung", reunida nos "Essais Florentins" (1990), em troca é do crítico de arte francês Didi-Huberman o ensaio mais empolgante a respeito do autor.

Na enumeração das línguas em que obras suas estão traduzidas, teria esquecido o português?! Não, não houve esquecimento. Só há poucos meses a falha foi sanada. Vale perguntar: por que houve a falta e como veio a ser vencida? Apresentam-se as razões lado a lado. A "Renovação" esteve entre nós desconhecida porque, a partir de nossa sabida pequena margem de leitores, se vem estabelecendo uma política editorial consistente em deixar os livros "sérios" para as editoras universitárias, ao passo que as editoras privadas se afincam em obras e gêneros de que podem esperar grande circulação. Não se alegaria que essa é uma inevitável decorrência da globalização neoliberal?

O conhecimento empírico do mercado editorial do Ocidente não confirma a hipótese, pois mostra em operação dois sistemas opostos. Há por certo o americano, secundado pelo inglês. Nesse, ainda que haja editoras privadas de prestígio e que editem obras de qualidade, são as universitárias que ganham de longe a palma. Nenhuma editora americana tem uma série como a Cambridge Companion; em troca, a extensão do leque editorial americano não encontra paralelo. Mas esse não é o único sistema. O inverso sucede na Alemanha, na França, na Itália e na Espanha, sem que se escute dizer que a Suhrkamp, a Gallimard, a Mondadori, a Seix Barral - escolho os nomes ao acaso - apresentam sinais de crise ou de mudança de critério na escolha de seus títulos.

É certo que, como mostram os sociólogos Dardot e Laval, em "La Nouvelle Raison du Monde" (2009), enganam-se os que pensam o neoliberalismo hoje em vigor como continuação da plataforma liberal, anterior à Primeira Guerra ou ao keynesianismo. O sistema a que estamos sujeitos se distingue por tomar os governos como respaldo das empresas, muito além dos mitos do alijamento do Estado ou do mercado livre, bem como pela busca de criar outro tipo de cidadão, chamado pelos autores de "indivíduo-empresa"; em vez da cooperação, nele domina o espírito de competição.

É a respeito pertinente observação feita há pouco, em tese de livre-docência, na USP, pelo professor Hélio Guimarães. Levantava ele, de passagem, a seguinte pergunta: estando acostumados a nos pensar como pertencentes a um país de segunda classe, que reação (choque ou espanto) intelectual nos aguarda se for verdade que nos incorporamos ao bloco economicamente forte do Ocidente? Ao que parece, nossa recente política editorial ignora a questão, como se o domínio do "economês" bastasse para uma nação se manter em destaque no mundo.

Venhamos ao segundo aspecto: como se explica que agora Warburg esteja traduzido e, ademais, surja em conjunto com dois de seus mais conceituados intérpretes franceses, Georges Didi-Huberman, com "A Imagem Sobrevivente", e Philippe-Alain Michaud, com "Aby Warburg e a Imagem em Movimento" (ambos de 2002)? Saber que as três obras foram lançadas por uma editora de porte mediano criaria uma enigma, se não fôssemos informados que a Contraponto foi subsidiada pela Fundação Roberto Marinho e pela Vale do Rio Doce. Ante a informação, poderá o leitor reagir de dois modos: ou ela lhe dará algum alívio - afinal, obras não destinadas ao grande público não precisam passar por editoras com dificuldade de difusão - ou aumentará seu desânimo: não será frequente que fundações e empresas abram suas bolsas em favor de produções pouco lucrativas.

Conto com a compreensão do leitor em haver escrito essa notícia, sem praticamente abordar a razão da importância intelectual conferida a Warburg. Vi-me obrigado a fazê-lo para abreviar o desconhecimento do autor. Contra esse desconhecimento, ainda acrescento uma pequena nota biográfica.

Aby Warburg era o primogênito de uma família de banqueiros de Hamburgo que, ao completar 13 anos, estabeleceu um acordo com seu irmão mais novo: cedia seus direitos quanto aos negócios da empresa familiar, em troca de receber por toda a vida cobertura para a compra dos livros que lhe interessassem. O contrato pareceria desarrazoado se não soubéssemos que a ambição de Aby era constituir uma biblioteca, composta por obras e disposta de tal maneira que lhe permitisse o acesso ao material que, desde a adolescência, ambicionava conhecer.

Em que consistiria esse acervo? Podemos supor, por sua obra principal, que dizia sobretudo respeito ao renascimento. Mas o testemunho já lembrado de Cassirer nos faz ainda saber que não seria tão só uma biblioteca para renascentistas. Pelo cumprimento do acordo, a biblioteca cresce de maneira espantosa. Dois fatos, contudo, interrompem a linha reta com que a biografia de Warburg vinha sendo traçada. Primeiro, no fim da Primeira Guerra, ele sofre um colapso nervoso que o leva a permanecer internado durante quatro anos na clínica psiquiátrica dirigida por Binswanger. Em carta a Freud, Binswanger mostrava a tristeza de saber irremediavelmente perdido o talento de seu paciente. Por sorte dos pósteros, Binswanger se enganava e a conferência que Warburg realiza com o material que colhera em sua viagem ao Novo México mostraria sua "cura".

Morrendo relativamente jovem, Aby Warburg foi poupado de sofrer a ascensão de Hitler. É graças ao empenho de Klibansky e Saxl que a biblioteca é transposta em tempo para Londres, onde, em 1940, será incorporada ao acervo da London University.

Para dar essas informações tive de me limitar ao que ressalta em "A Renovação" em mínimas frases. Restrinjo-me a atentar para o conceito com que Warburg destaca o que é próprio à imagem: o conceito de "Pathosformeln" - "fórmulas de pathos", como bem escreve o tradutor Markus Hediger. Tais fórmulas acumulam estados-instantes não só momentâneos, mas conflitivos; sua instabilidade combina-se à dinamicidade concretizada em figurações pictóricas e verbais. Na formulação precisa de Alain-Michaud, a imagem é um "fóssil em movimento", isto é, contém uma compactação de tempos que a tornam incompatível com a sucessividade do tempo histórico. Daí o descompasso entre os campos em que domina a imagem e a mera indagação histórica. Só a partir daí quanta coisa já terá de ser repensada?


(Luiz Costa Lima)

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