terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio

Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio
(Celia Pedrosa) 



 A coletânea de poemas Estação Piedade é a primeira publicação de Elesbão Ribeiro, de 6anos. Isso lhe atribui desde logo um caráter tardio, em verdade bastante curioso. Pois a experiência de vida do autor, marcada pelo convívio afetivo e profissional constante com a literatura – como professor, colaborador de revistas, saraus e blogs, amigo de poetas e editores – com certeza lhe teria garantido há muito tempo acesso à publicação. Tal circunstância particular poderia ser ainda confirmada por uma característica da atividade literária contemporânea no Brasil: o desenvolvimento das técnicas de produção e reprodução gráfica vem permitindo seu barateamento e assim a consolidação de iniciativas que se relacionam de modo diversificado e mesmo imprevisível com demandas de mercado e do próprio campo letrado. Além de tudo, no espaço aberto por essas iniciativas avulta a produção de poesia e nela– face a inexistência de parâmetros estéticos hegemônicos - a convivência de poetas experientes e novatos, mais ou menos consagrados, de diferentes dicções.

Nesse contexto, a estreia tardia de Elesbão deve ser com certeza considerada uma escolha  deliberada, que funciona como sinal de um positivo distanciamento da perigosa e recorrente associação da criação poética a um entusiasmo juvenil tido como garantia de ousadia sentimental e/ou experimental. A esse respeito, aliás, Mário de Andrade já denunciava, no ensaio “Elegia de abril”, a tradição do “livrinho de versos inaugural” e suas sequelas na vida intelectual brasileira, inclusive no modernismo, a ela contrapondo a produtiva lentidão disciplinada, aprendida mais tarde, pela geração de jovens da década de 40, com a formação universitária então ainda incipiente.

Extrapolando nosso caso específico, também o clássico ensaio “Tradição e talento individual”,
de T.S. Eliot, enfatiza a capacidade de convivência com a tradição como condição para que o escritor jovem elabore lentamente sua singularidade a partir da experiência de conhecimento do outro. Tais considerações repercutem hoje, de diferentes modos, na intensa revisão dos valores idealistas modernos de originalidade e ruptura e no consequente enfrentamento das tensões, contradições e aporias inerentes a toda relação de contemporaneidade. Exemplo aqui em especial pertinente dessa revisão é o livro O estilo tardio, em que Edward Said revê o caráter tradicionalmente negativo atribuído a esse conceito, a partir daí apontando para diferentes formas de compreensão da temporalidade na/da arte.

Perseguindo essa trilha, propomos considerar a hipótese de que a poesia de Elesbão ganha em ser compreendida pela associação dessa opção pelo tardio a uma estética do afeto tímido e/ou humilde. É claro que desse modo ela pode ser de imediato aproximada da poesia de Manuel Bandeira – cuja importância para a poesia a partir dos anos 70 não foi ainda suficientemente avaliada. Mas ao mesmo tempo também pode ser por essa via diferenciada pela forma como articula experiência de vida e de leitura desse e de outros escritores, inscrevendo-se de modo singular no investimento contemporâneo em uma poética do prosaico e do narrativo.

Deve-se ressaltar, no entanto, que tal singularidade vai se evidenciando pelo contraste com formas menos resolvidas dessa articulação apreendidas ao longo do livro. Este se apresenta de início como sequência de poemas e séries de poemas não subdivididos ou diferenciados por nenhum tipo de indicação cronológica ou temática, compondo uma unidade na verdade bem problemática. Poisn essa ausência não impede que vá se revelando pouco a pouco o entrelaçamento de três dominantes discursivas, às vezes mais, às vezes menos distintas, tramadas sob o fundo também aparentemente uniforme de coloquialidade ao mesmo tempo terna e irônica.

Podemos identificar então um primeiro grupo de poemas, em que através da temática amorosa - que continuará sempre predominante - Elesbão parece apenas exercitar procedimentos já canonizados da tradição brasileira de poesia moderna, remetendo-nos ao poema-piada de Oswald de Andrade, ao alumbramento melancólico-erótico de Manuel Bandeira. É o caso, por exemplo, do primeiro poema da série “do corpo e da alma”, formulado como um aforisma bandeiriano: “a alma ao contrário do corpo/não tem por onde se entre”.

Já na leitura da série intitulada dedicações, encontramos poemas que se realizam mesmo como declaração dessas e de outras dívidas. Mas desse modo, e justo na medida em que enfatizam humildemente sua incontornável posterioridade, é que eles parecem abrir espaço para o esboço de uma voz mais diferenciada, em que o falar como o outro dá lugar a um jogo entre falar sobre o outro e falar-se outro. E isso porque, por um lado, em cada poema o uso objetivo do nome próprio em títulos e dedicatórias, se vincula à construção sintética de uma identidade discursiva a ele univocamente associado. No poema “noites”, dedicado “para clarice lispector”, lemos: há noites em que deixo tudo arrumado /pratos copos talheres lavados/há noites em que por perversão /a mim mesma / deixo tudo desarrumado/pratos copos talheres engordurados/ e o cinzeiro cheio de sarro”. Já no poema “baudelairiana”, redescobrimos: “diz a minha bela/ doce e graciosa/ querida e amada /precisamos ter pobres –/precisa haver pobres/ pergunta-me então/quem há de varrer as ruas/ por onde passamos”.

Por outro lado, esses poemas constituem uma cadeia de referências agora muitas e muito diversas daquelas duas que identificamos no segmento anterior. Elas nomeiam e aproximam prosadores e poetas, nacionais e estrangeiros, de diferentes tendências: Clarice Lispector e Baudelaire, mas também Dalton Trevisan, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Górki e Machado de Assis, Cesário Verde, Bertold Brecht, Gonçalo Tavares, Oswaldo Martins e Gregório de Matos. Desse modo se desdobra uma encenação tanto da subjetividade poética quanto da formação do poema como efeito de uma herança de convívio com o heterogêneo, de sentido por isso, além de tardio, sempre aberto, incompleto.

Efeitos semelhantes vão dar o tom de poemas que, embora não se apresentem como tal, e componham uma série intitulada estação piedade, também funcionam como dedicações. Estas se mostram mais uma vez material para a aproximação singularmente desierarquizada de referências, dessa vez a importantes e bem distintos cineastas – Buñuel, Fellini, Polanski, Anselmo Duarte, Bergman... - e a cinemas mais ou menos modestos, do Odeon na Cinelândia, e do Olinda, na Tijuca, aos Bruni, Alvorada, Ridan e Mascote suburbanos, no Méier, na Piedade, na Abolição - assemelhados todos como motivo de descobertas de prazer, tédio e dor. Assim, o poema I relembra : “cine Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio Odeon/Fellini/pipocas saltam/ no saco de pipocas/diante de mamas tão fartas”; e o poema V
acrescenta: “cine alvorada/ Bergman/um velho a comer morangos/ entre silvas/ me olhando/sentado no cine alvorada/uma mulher de maiô/ a mergulhar no lago copacabana”.

Aí, de novo se entretecem vida e arte para mobilizar um sujeito poético que de leitor passa a espectador de cinema. Em ambos os casos, sua voz parece surgir como efeito de uma experiência de silêncio e deslumbramento humildes que paradoxalmente ativa a força afetiva e estética que desloca limites temporais e espaciais com vistas a uma escrita vivificante do presente. No sintagma “estação piedade”, não por acaso escolhido para título do livro, concentram-se índices do potencial significativo desse duplo deslocamento. Pois ele remete tanto ao nome de uma cadeia contemporânea de cinemas cult, característica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e de sua elite intelectual, quanto a uma distante e suburbana parada de antigos trens, num bairro de gente pobre, misturando estética e afetivamente referências comumente antagonizadas. Essa mistura resulta bem instigante, na medida em que convida a problematizar formas unívocas de identificação e valorização do poeta, da poesia e de sua inscrição social – hoje tão em voga.

Assim, a série de poemas sobre a memória ao mesmo tempo emotiva e culta do cinema se desdobra naqueles que convocam cenas de brincadeiras populares antigas como os jogos de bola de gude e amarelinha, ou a corrida atrás de doces de Cosme e Damião, ao lado de perspectivas de janelas, cozinhas e jardins que agora contrapõem sua sobrevivência anacrônica à atualidade urbana de grandes edificações e aglomerados humanos – sem idealizações, no entanto. No poema “laços”, por exemplo :“a torneira da pia da cozinha da minha casa/ lembra-me um laço de fitas/ daqueles que as raparigas traziam presos aos cabelos/ lembranças de um tempo em que te via passar/ com um cântaro/a caminho da fonte”; já em “mulher à porta da casa”:“ a vizinha que mora em frente/ abriu a porta de casa/ estava de azul/ viu-me à janela/ acenou-me/ olhou para um lado/ olhou para o outro lado/ entrou/fechou a porta”.
Nesse cenário o leitor/espectador de cinema se identifica a uma subjetividade anônima, como pode ser a de qualquer um, em qualquer lugar, afetado por uma experiência de fragilidade e de incerteza – como aparece também nos poemas dedicados à mulher amada. A esta, o poeta nomeia como namorada, amiga, rapariga - opção de novo anacrônica face ao coloquial brasileiro contemporâneo, que representa ainda uma sobrevivência do coloquial lusitano, atualizando assim as origens familiares e culturais do poeta. Diz o poema “concordância”: “ a minha namorada não deve gostar de mim/ tem lá suas razões/ é doutora por cá e pós por lá/ poliglota fala inglês francês e português/ não sabe cozinhar/ propus-lhe um trato/ eu cozinho e tu lavas o prato/ não aceitou/ medo da louça lhe estragar as unhas/ definitivamente não sei”; ou ainda o poema “caprichos”: “é muito mimada a minha amada/ está sempre se queixando da falta de atenção/ amanhã de manhã vou lhe mandar flores/ amanhã de tarde vou-lhe mandar flores/amanhã de noite vou-lhe mandar flores/ à noite levo-lhe flores/ para que se lembre das flores o dia inteiro.

O movimento de atualização tardia se concretiza também na forma predominantemente narrativa dos poemas. Esta atesta o vínculo do poeta com tendência dominante da poesia contemporânea, associada a uma aproximação da realidade vivida do poeta e de um leitor comum sobre o qual pouco se pensa, ou se pensa, na maioria das vezes, a reboque de clichês. No entanto, ao associá-la à opção pelo tardio, a poesia de Elesbão convida a pensar que essa atualização narrativa pode ter sua força derivada justamente do fato de encenar o inevitável descompasso entre o sujeito e sua própria experiência.

Pensar sobre esse descompasso é pensar o prosaico e o cotidiano, sem simplismo, em sua riqueza e dificuldade cujo reconhecimento convida a repensar a experiência ética e estética do estar em comum. Para concluir esta breve leitura, talvez se possa considerar exemplar dessa força comunicativa desterritorializante, o uso da imagem da lavadeira que o poeta, de modo emblemático, escolhe para abrir e encerrar o livro. Na epígrafe, ela serve para recuperar de Graciliano Ramos a vontade de escrever “da mesma maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício”. No último poema, o título de inflexão cabralina, metapoética, “lavar palavras”, introduz uma associação em que o infinitivo de tom didático e imperativo é modalizado por um subjuntivo condicionalizante, assim como o valor de clareza e limpeza do trabalho poético é modalizado pela referência lírica a antigas e imprecisas paisagens de aldeias e riachos. Assim, em sua simplicidade, a imagem da lavadeira dribla imediatismos sentimentais ou realistas, fazendo da leitura um gesto em que a concretude de imagens vistas e/ou lembradas, apresenta-se simultaneamente próxima e distante, evidente e imprecisa, contemporânea e tardia - como toda experiência de convívio. Leiamos então o poema: “pudesse fazer com as palavras/ aquilo que faziam antigas lavadeiras/ em riachos antigos/ de antigas aldeias/ molhar as palavras/ ensaboar as palavras/ bater as palavras contra a pedra/ e recolhendo-as/ das águas límpidas do rio/ deitá-las na relva”.

Celia Pedrosa é professora do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da UFF, onde coordena os grupos de pesquisa "Poesia e contemporaneidade"e "Pensamento teórico-crítico sobre o contemporâneo". Publicou, entre ouros, os livros Ensaios sobre poesia e contemporaneidade (EdUFF, 2011) e Antonio Candido: a palavra empenhada (EdUSP/EdUFF, 1995).

O livro Estação piedqade, de Elesbão Ribeiro - poeta editado pela TextoTerritório - pode ser adquirido no seguinte endereço: 

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