terça-feira, 29 de abril de 2014

modinha para dorival caymmi

I
da síntese
ao mar composto
em espanto

o empuxo das sereias
a boceta das teresas
tim tim por tim tim

pelas ruas desertas
cabem no lamento
da preta do acarajé


II
noite
é noite ê

pescador voltou

no mar
roído de peixes


III
na lagoa o abaeté
mariazinha não voltou

foi amor de desonra
foi amor de desgosto

foi amor

foi prenhês
na água escura

do abaeté


IV
o corpinho dela
o requebro dela

a bata cai no ombro
das horas

sorri nos olhos alvos
e na curva do xibiu

há perfume de alecrim


V
a paleta atiça a cor
dos boleros

fundamenta o requebro
das mulatas

que vestem
os panos da costa

(oswaldo martins)


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Rogério Batalha

TextoTerritório lança obra de Rogério Batalha em três livros

Coleção traz textos inéditos, antologia e volume com o poema Cidade fundida

Aos olhos do poeta e letrista Rogério Batalha a cidade não é exatamente bipartida, ao contrário, morro e asfalto se fundem no trânsito diário da alegria e da labuta. Assim, o escritor não se deu às redundantes dicotomias do espaço urbano, mas leu o território que o cerca a partir da afirmação radical de um princípio de vida e prazer, sem deixar de lado a visão crítica. Essa é a tônica dos livros Inventário, Cidade fundida e Medida do sal, que a editora TextoTerritório reuniu no lançamento especial com o objetivo de ampliar a
circulação a obra de Batalha.

As capas são da Artista plástica Mozileide Nery, inspiradas em uma dedicatória de Arnaldo Antunes feita para Batalha. Para o lançamento, a TextoTerritório encomendou 50 caixas especiais, que foram pintadas pela artista. No lançamento, Mozileide Nery também fará uma exposição de suas monotipias sobre tecido.

Desde o primeiro livro publicado Batalha teve a qualidade de sua poesia reconhecida por nomes que são referência na cultura brasileira, no entanto seu trabalho continuou em relativo ostracismo. Waly Salomão escreveu a contracapa de seu primeiro livro, Malícia, já o segundo, Bazar barato, teve de contracapa assinado por Antonio Cicero, enquanto Melaço ganhou prefácio de Ricardo Oiticica. “As edições eram independentes, algumas com tiragem de apenas cem exemplares. Estou empolgado porque os livros praticamente não existiam mais. Eu transito num ambiente específico que é o subúrbio. Voltar a circular numa vitrine maior está me animando a escrever mais”, diz o autor que passou os últimos anos compondo mais que escrevendo livros.

Dentre as novas publicações, Inventário é uma antologia de poemas dos quatro livros já publicados Malícia, Bazar barato, Melaço e Anfíbio.

Cidade fundida dialoga com o mito da cidade partida. O impactante poema, que havia sido publicado apenas em um livro universitário, entre obras de ficção e não-ficção e fora de comércio, ganha corpo pleno, em um volume único.

Medida do sal reúne textos que são inéditos em livro, pois circularam apenas em CDs. A publicação traz 40 letras de Rogério Batalha musicadas por diversos parceiros que transitam pelo universo do samba, como Moacyr Luz, Roberta Nistra, Dú Basconça, Agenor de Oliveira, Paulinho Lêmos, Eliane Faria, Kinho e Rogério Lopes. 



SOBRE O AUTOR

Rogério Batalha é natural de Miguel Couto (Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense). Circulou por Madureira, Cascadura, Penha e outros territórios. Depois de editar de maneira independente seu primeiro livro, Malícia, em 1998, publicou ainda Bazar barato (1999), Melaço (2002), Anfíbio (Armazém Digital, 2005) e teve sua poesia incluída em uma coletânea organizada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Suas parcerias como letrista com Moacyr Luz, Rogério Lopes e Dú Basconça foram apresentadas no Encontro de Compositores promovido pelo Centro de Referência da Música Carioca. Com Roberta Nistra, da nova geração do samba da Lapa, escreveu sambas de temática afro-religiosa. Suas canções entraram para o repertório da cantora Lu Oliveira, que registrou “Passou, passou” (Moacyr Luz e Rogério Batalha) em seu primeiro CD, produzido por Zé Renato (Boca Livre); e de Manu Santos, que gravou em seu disco de estreia “Domingo é dia” (Moacyr Luz e Rogério Batalha).



domingo, 13 de abril de 2014

Três poemas de Juan Carlos Mestre

Salmo dos Bem-aventurados

Ávida vena, dame tu cordel.
Antonio Gamoneda



Bem-aventurado o que aos quarenta anos ainda não conheceu a recompensa e chama virtude o cordão de um sapato, o homem sem convicção que deitado na relva passa o dia dormindo e discute sobre o esforço com os gafanhotos.

Bem-aventurado o que suporta o empréstimo da verdade, o escavado em pedra e o que construído de palha é alternadamente senhor do nada e rei de um só vassalo.

Bem-aventurado tu que sem te chamares Juan não és outro que Juan o explícito, o pai do ar cujos filhos herdarão as máquinas de moer vento.

Bem-aventurado o que passou a noite com a insignificância, porque embelezado pela privação será dele alguma vez a ausência,

o que é vizinho de dois bocas, o da voz miúda a que lhe falta um dente, o homem sem pretexto que teve um asno, uma boina, um bode.

Bem-aventurado o que ante o argumento da pólvora torce o focinho de lanterna e fala alto, o que paga seu uivo com a vida, o que num instante é articulação de lobo e árvore ajoelhada.

Bem-aventurado o pássaro cujo canto desperta o coração de uma mãe nos galhos da tristeza.

Bem-aventurado o manco e seu violino de oxigênio, a abelha de açúcar que suga a superfície dos licores brancos.

Bem-aventurado o viajante que vaga no concêntrico e traduz o limite, a fertilidade do sacrifício, a teologia das medalhas da lua.

Bem-aventurado o que emigra à margem de seu amor, porque dele será a estranha fruta do animal de sábado.

Bem-aventurado o esqueleto de Rimbaud e seu pássaro influente, único herói no festim do crânio.

Bem-aventurado o que diante da alusão aos espelhos se volta pensativo e ignora azul e amavelmente suas lágrimas.

Bem-aventurado o imortal do morto, a desculpa do chapéu e seu balido, o repentinamente desenganado no paladar das tábuas da morte.

Bem-aventurado a andorinha de madeira que faz o menino pulsar antes de conhecer o sexo.

Juan Carlos Mestre

Tradução: Ronaldo Costa Fernandes


PARMÉNIDES

La verdad es una diosa que enseña el camino a los errantes.
Si debe ser necesaria la luz antes ha de no ser la noche.
El olvido es la presencia aparente de lo que aún existe.
La diosa habita el círculo de la benevolencia, es piadosa.
Lo femenino es la rueda de un carro, lo masculino la otra.
Yo soy dos semejanzas paralelas de amor, dos infinitos.
No sé si las yeguas piensan o padecen, dudo entonces.
¿Es más justo el que nace o el que no pudo ser?
Cuando me muera regresaré al todo de la nada. Estoy contento.

Juan Carlos Mestre



HERÁCLITO

Mi padre dijo: Hoy es el día del fuego
en cuya destrucción todo es diferente.
Ancho era el mar y yo quería buscarme a mí mismo,
rodee su cuello con dulzura, sus extinguidos brazos,
aquellos que tensaban el arco y en la luz del día
caricia exacta de más y más amor hacían.
También el humo hace toser a los dioses,
por eso padre mi alma está llena de fuego.
Yo le decía, pero su sueño era hallar la orilla,
averiguar el inicio de la costa, botar naves.
No se da cuenta que el agua quemó ayer todas las playas.


Juan Carlos Mestre

sexta-feira, 11 de abril de 2014

estudo para o valongo

1

o horror das trevas
no valongo

nos ossos
em suas concavidades

nas unhas
em restos de cabelo

não fossem as ruínas
a boca dos mortos

ou a geografia
de espantos

2

a mandíbula solta
e o braço em partes
feitos embrulho

num canto da cidade

3

o juiz da ribalta
cheio de piolhos
usou no rosto pomada

na cabeça a peruca
e no cu um espeto

bem vodu

4

no sitio arqueológico
as cacimbas

a febre da dor
e este convite
para dançar

5

a casca do baobá lavra
de histórias

o corpo
os pontudos seios

os caralhos duros
da umbigada

6

quando estaca
a umbigada

a vida
ou o gurufim

7

uma caveira
não só é uma caveira

uma caveira
fala pelos mortos

fala dos que morridos foram
pelo assassinato

8

um morto
mesmo os mortos assassinados

não só é um morto

9

os mortos do valongo
pretos novos

no limite da palavra

cravam ossadas
nos olhos


(oswaldo martins)

terça-feira, 8 de abril de 2014

olhos



olhos
para celeste


sobre o ombro que sustém o mundo
desenfreia sua trágica experiência
de afetos

os baobás da lembrança
na palma das duas mãos respondem
pelos ombros de irene

perpassa de joão, o marinheiro,
aos casacos de nomes
o alumbramento

celeste-definidora
caixa de segredos
quando os olhos

são olhos
olhos para a poesia

(oswaldo martins)


quinta-feira, 3 de abril de 2014

iracema

o gênio de colombo
manchou de opróbrios a alma do mazombo,
cuspiu na cova do morubixaba!
(augusto dos anjos – os doentes)

a noite não era simples
nos pátios dos colégios

o hino para sempre imbecilizado
os fantoches fantasiados e nefastos
do neofascismo

os que roubaram o corpo de macunaíma
e o escalavraram na pedra
na ponta da baioneta

os que descendem da linha de caxias
e não da linha direta de xangô

os putos e suas metafísicas
de corpos despedaçados

a tumba cinquentenária
para o escárnio dos escarros

nos que  ali estão para que ainda
lhes extirpemos o fígado


(oswaldo martins)