quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O movimento IV do poema OS DOENTES, de Augusto dos Anjos

Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!


Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.


Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!


Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.


A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!


E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!


Como quem analisa um. apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema! ...


Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
A ultrajante invenção do telefone.


E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!


A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em deante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!


Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua,
Que progredia sobre os seus despojos!


Mas, deante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,


Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!


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